Ah, como gostamos dos salmos! Nos deleitamos em falar sobre como o Eterno nós protegerá do mal quando andamos no vale da sombra da morte (Sl. 23:4), ou sobre sermos consolados e curados de nossas feridas (Sl. 147:3)
Geralmente, os salmos, no hebraico tehilim (תְּהִלִּים), são o livro bíblico favorito da maioria das pessoas. Não só judeus, como de outras religiões que também têm o Tanakh (Bíblia Hebraica) como livro sagrado.
Mas, essa lua-de-mel dura até que chegamos a algumas frases bastante desconfortáveis. Como as abaixo, na qual o salmista se dirige ao Eterno, assim dizendo sobre seu rival:
“Sejam órfãos os seus filhos, e viúva sua mulher. Sejam vagabundos e pedintes os seus filhos, e busquem pão fora dos seus lugares desolados.” (Sl. 109:9,10)
O que aconteceu com as palavras doces e belas do nosso livro favorito?! – Pensamos, chocados e constrangidos.
Tensos, passamos rapidamente por essas passagens, procurando logo por palavras mais belas, torcendo para não sermos confrontados por ateus ou, pior, por aquelas benditas crianças perguntadoras!
Certamente deve ter alguma explicação espiritual profunda, que nos leve pra longe dessas palavras! – Tentam justificar alguns. Afinal, nada mais comum do que tentar explicar porque a Bíblia não estaria dizendo aquilo que… bem… ela de fato está dizendo.
É compreensível a razão de muita gente ter vergonha de passagens como essa. Compreensível, mas não é necessário. A maioria das pessoas se constrange porque tem uma visão errada das Escrituras.
A cultura ocidental na qual estamos inseridos muito influenciou a relação das pessoas com a Bíblia, de modo que hoje a maioria das pessoas religiosas afirma: A Bíblia Hebraica é Palavra de Deus! É quase como se o texto bíblico fosse, todo ele, uma grande mensagem “psicografada” por profetas, para a humanidade.
Mas, não era assim quando a Bíblia foi composta. A visão judaica acerca da Bíblia é muito mais complexa do que isso, para dizer o mínimo.
O livro dos salmos não é profético. Não está sequer entre os Nevi’im (Profetas). Não são revelações do Eterno para nós, mas sim cânticos inspiradíssimos, de autores que tinham uma relação próxima com Ele. São muito mais textos de homens falando com o Sagrado, do que dEle se dirigindo aos homens. Nesse ponto, os salmos são quase que uma antítese da profecia!
Como surgiu o livro de salmos? E por que quem os compilou não escolheu somente palavras belas e motivadoras?
Os salmos foram uma coletânea escolhida por nossos sábios, para compor uma espécie de primeiro sidur. Os salmos eram recitados em comunidade tanto no Templo quanto nas sinagogas. Os mais alegres animando nossas festividades, os mais lamuriosos dando o tom de nossos jejuns, e os mais encorajadores nos auxiliando quando estávamos abatidos por causa do exílio ou das adversidades.
O mundo dos salmistas não era como a realidade de hoje. Era um mundo ainda mais sanguinário e violento. As passagens que falam sobre destruições, e mortes quase sempre bem mais literais do que gostaríamos de imaginar. Especialmente quando comparados com a civilização ocidental.
É natural, portanto, que os sentimentos de revolta, de desejo de vingança, e de dor fossem tão intensos quanto são, por exemplo, os clamores das vítimas de um atentado terrorista, ou de pessoas que, diante de uma guerra, perdem tudo o que tinham.
Mas, por que os nossos sábios incluíram cânticos tão densos, quando compilaram este livro? A fé mais “politicamente correta” de hoje certamente pediria uma linguagem mais light.
Existe uma lição profunda nos motivos, que pode ser libertadora, se entendida corretamente.
Vivemos numa época em que a tolerância à dor, à tristeza, à revolta, e à ira, sentimentos tão naturais ao ser humano, é muito menor. O pensamento positivista, levado ao extremo, e a proliferação exagerada dos antidepressivos e analgésicos tanto físicos quanto emocionais, praticamente nos proíbem de sentir dor.
Tentam nos vender a ideia de que é terrível ter sentimentos negativos. E, se demonstramos qualquer sentimento que não seja felicidade, logo somos censurados, ou ouvimos sermões como o quanto esses sentimentos “negativos” são a causa, e não consequência, de nossas dores. Ou pior ainda: Ouvimos que eles “atraem coisas negativas”, como se os nossos pensamentos fossem deuses revestidos de autoridade e poder! E lá vamos nós buscar uma receita de fluoxetina no médico do convênio.
E, para essa sociedade tão sintomática em sua imposição do “don’t worry, be happy” (não se preocupe, seja feliz), esses salmos podem ser um bálsamo curativo.
É evidente que os valores do Judaísmo, que proíbe a vingança e morte de inocentes, são totalmente contrários a por em prática ideias como a do Sl. 109,9-10. Mas, note bem, são contrárias à prática, e não ao sentimento!
Quando nossos sábios optaram por incluir esses salmos no livro homônimo, é como se estivessem nos dizendo: Sentir-se assim é normal! E sentimento você não controla. Você simplesmente… sente!
Como psicanalista, afirmo: Não há ira que não seja mortal, nem ódio que não seja de aniquilação. Nossos instintos são muito mais primitivos do que gostaríamos de reconhecer. Sentimentos como raiva, ódio, revolta, desespero, só são “civilizados” porque aprendemos a varrê-los para debaixo do tapete.
Os textos mais duros do livro de salmos não deveriam ser ignorados! Porque nos ensinam que não precisamos nos dirigir ao Eterno tão somente nas nossas horas de alegria e de pedido de proteção. Podemos também confiar que Ele é poderoso para suportar os nossos sentimentos mais sombrios e escuros. Afinal, Ele já os conhece. Podemos tentar esconder isso de nós mesmos, fingir que não existem. Mas Ele já nos conhece, e nos aceita como somos.
Extravasar os sentimentos de fúria, ódio, o desejo de vingança, e aniquilação, é justamente uma das formas terapêuticas mais indicadas para poder começar a lidar com isso. Tentar escondê-los do Onisciente é tão fútil quanto é ingênuo. Ele sabe, pois nos conhece desde antes de nascermos.
Os trechos dos salmos que falam sobre esses sentimentos não são profecias condenatórias. Nem são uma execução sumária de inocentes, mas sim o grito desesperado de uma pessoa que sofre de uma dor profunda, que já não consegue mais suportar dentro de si!
E o Eterno, na condição de Senhor, pode suportar tudo aquilo que nós não temos força para aceitar em nós mesmos. Dizer a Ele como estamos nos sentido é um passo importantíssimo para permitir que Ele nos cure emocionalmente.
Se estivermos dispostos a nos abrir perante Ele, então compreender que Ele é capaz de suportar a nossa humanidade pode ser como um remédio maravilhoso contra a tirania da felicidade artificial!
Quando você estiver em seu canto, falando com Ele, grite, chore, soluce, e coloque pra fora o que sente! Não há nenhuma novidade que possa chocar Aquele que sabe de todas as coisas.
Uma das características mais belas, e das maiores contribuições do Tanakh (Bíblia Hebraica) à literatura religiosa antiga em geral é a forma extremamente explícita com a qual trata as imperfeições humanas.
Se deixarmos que a releitura moderna oculte ou minimize tais características, ao invés de tentarmos compreendê-las, não apenas distorcemos as Escrituras, como perdemos a oportunidade de aprendermos com elas uma lição extraordinária.