Pergunta: Divorciar-se é pecado? Pode um divorciado se casar novamente?
Essa é uma ótima pergunta. Porém, para respondê-la, é importante antes de tudo que o leitor esteja disposto a compreender que existem questões que são muito mais complexas do que simplesmente ser ou não ser pecado.
I – O Ideal do Criador
Primeiramente, analisemos o que o Eterno revelou, na Torá, ser o ideal:
“Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne.” (Bereshit/Gênesis 2:24)
O Éden é um exemplo do que seriam alguns dos principais ideais do Eterno. Nele, observa-se que o Eterno criou o homem e a mulher para que fossem companheiros. Divórcio, poligamia e outras práticas jamais estiveram no ideal dEle.
Mas, tornou-se necessário legislar sobre elas porque o ser humano em muito se desviou dos padrões ideais.
Em sendo assim, é claro que o Eterno não se agrada do divórcio. Nossos sábios há muito reconheceram isso. Rabi El`azar diz, na Guemará:
“Se um homem se divorcia de sua primeira esposa, até o altar pranteia.” (b. Gittin 90b)
II – Permissão e Condições
Isto posto, ao contrário de outras religiões como, por exemplo, o Catolicismo, o Judaísmo não considera o ato da separação proibido.
Ao contrário, há clara previsão sobre isso na Torá:
“Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela encontrar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa.” (Debarim/Deuteronômio 24:1)
A Torá aqui institui a prática da carta de repúdio, que era um documento de dissolução do casamento, análogo ao que seria, em nossa sociedade, dar entrada num pedido de separação e divórcio na justiça.
Ora, se a Torá permite, e faz provisão a respeito, então não é pecado divorciar-se. Muito menos, casar-se novamente, pois o objetivo da carta de repúdio era justamente deixar a mulher livre para um novo relacionamento.
Mas se o divórcio é lícito, então, como conciliar isso com a revelação do Éden?
A resposta é simples: O ato de se separar, em si, não só não é pecado, e sim a destruição do relacionamento. Até porque ela não envolve apenas o casal, mas frequentemente também os filhos.
Na realidade, dependendo do ambiente, o ato da separação pode ser até mesmo a solução dos problemas. Como, por exemplo, no caso de uma das partes ser agredida, sofrer maus tratos, ou ser repetidamente traída, etc.
Agora, se há um divórcio, então é praticamente certo que houve pecado. Nenhum relacionamento pode ser tão facilmente destruído sem que pelo menos uma das partes tenha cometido transgressões para com a outra.
Em outras palavras, o pecado está no processo com o qual o relacionamento foi conduzido, e não no ato derradeiro de por fim à relação.
III – Não ser leviano
Contudo, existe mais uma coisa que a Torá deixa claro: Divórcio é uma decisão muito séria, e tem caráter definitivo. Portanto, não pode ser tomada de forma leviana. Observe:
“E este também a desprezar, e lhe fizer carta de repúdio, e lha der na sua mão, e a despedir da sua casa, ou se este último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer, então seu primeiro marido, que a despediu, não poderá tornar a tomá-la, para que seja sua mulher, depois que foi contaminada; pois é abominação perante ADONAY; assim não farás pecar a terra que ADONAY teu Elohim te dá por herança.” (Debarim/Deuteronômio 24:3,4)
O que a Torá está ensinando neste ponto é que um casal divorciado que veio a constituir família com outra pessoa não deve, depois, voltar a ficar junto, pois o Eterno considera tal ato abominável. E isso a Torá diz para justamente evitar que as pessoas brinquem com a vida umas das outras.
No Oriente Médio antigo, a proposição da Torá foi revolucionária. Ela obrigava o homem a dar um documento à esposa para comprovar que ela estava desimpedida. Isso foi exigido porque a cultura extremamente machista da região tratava a mulher como praticamente uma propriedade do homem, e não como uma companheira no mesmo patamar, que é o ideal do Éden (Gn. 2:20). Não raro, a vida da mulher se tornava um joguete na mão do homem.
IV – A Torá protegeu a mulher
Não era incomum que maridos insatisfeitos com suas esposas as despedisse sem qualquer direito, e não dessem a elas os devidos documentos, o que a tornava, aos olhos da sociedade, uma adúltera caso se relacionasse com outra pessoa, o que poderia significar até mesmo a morte dela.
Também era frequente que maridos despedissem suas esposas, e depois as procurassem de volta, gerando problemas tanto de ordem emocional quanto prática. Por essa razão, a Torá também exige um maior comprometimento.
A halakhá judaica ainda exige que a comunicação seja por escrito, e também dada de maneira inequívoca. Não pode haver dubiedade nesse sentido:
“Se a pessoa está atribulada por ímpeto destrutivo e, no momento em que sua enfermidade começa a se apoderar dele, diz: “Escreva um guet para minha esposa.” Suas afirmações não têm consequência, porque seus pensamentos não estão organizados e assentados. A mesma regra se aplica a uma pessoa que ficou embriagada como Lot.” (Sefer Nashim – Hilkhot Guerushin – 2:14a)
“Deve realizar o divórcio através de um documento escrito, e não através de outros meios. E esse documento deve comunicar que está se divorciando…” (Sefer Nashim – Hilkhot Guerushin 1:1b)
O objetivo disso era proteger a mulher, como escreve o rabino Moshe Shamah:
“A lei do divórcio deve ser compreendida associada com os direitos e responsabilidades mútuas do marido e da mulher, bem como em conjunto com um sistema jurídico com o devido poder. A lei certamente oferece à esposa proteção de maus tratos, extorsão e de ser abandonada; ela também seguramente provê a ela a possibilidade de iniciar a dissolução do casamento através da corte quando indicado.” (Parashat Ki Tese Part II – On Torah Advances for Human Rights)
Tal preocupação era uma grande inovação da Torá. A carta de divórcio, denominada sefer keritut (pergaminho de corte), como é chamado no texto bíblico, ou guet (documento) no hebraico mishnáico, era um direito da mulher, importante para o contexto da sociedade israelita.
Sua presença era justamente o que mostrava para aquela sociedade, sem qualquer ambiguidade, que a relação havia sido desfeita, e que a mulher poderia se casar novamente.
V – Preservação da Vida e do Lar
Vale ressaltar ainda que, para o Judaísmo, a preservação da vida é elemento fundamental, pois a Torá diz:
“Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes; para que vivais.” (Debarim/Deuteronômio 4:1a)
Isso nos ensina que os mandamentos dados pelo Eterno são para a vida, e não para a morte. No Judaísmo, há pouquíssimas coisas que são preferíveis a colocar a vida ou a saúde em risco. E o casamento não é uma delas. Em sendo assim, em casos de agressão ou maus tratos, espera-se que a parte agredida zele por sua vida e ponha fim no relacionamento.
De forma análoga, é também fundamental que o casal esteja disposto a se esforçar para ter um bom relacionamento. Se o relacionamento for ruim e não houver esforço de mudança de ambas as partes, há casos em que o relacionamento é tão negativo que é preferível optar pela separação do que continuarem, ambos, brigando e se ferindo:
“Melhor é morar só num canto de telhado do que com a mulher briguenta numa casa ampla.” (Mishlê/Provérbios 25:24)
Embora o provérbio exemplifique com a questão da mulher, evidentemente o mesmo vale para o caso do homem.
VI – Conclusões Universais
Todo o procedimento da carta de divórcio, descrito na Torá se refere à sociedade israelita. O que, todavia, podem derivar de aprendizado aqueles que não vivem, nem desejam viver, como judeus?
Há algumas lições importantes, que são universais:
- Divórcio é coisa muito séria, que afeta a vida não só do casal, como dos filhos. Sendo assim, não deve ser decisão tomada sem muita reflexão, pois não pode ser leviana.
- Embora o divórcio não seja o ideal desejado pelo Eterno, é permitido.
- Uma pessoa que se divorcia está livre para se casar novamente.
- O pecado, seja exclusivamente de uma das partes ou de ambas, está no processo de destruição do casamento, e não no ato da separação de corpos.
- O divórcio é preferível a uma situação de maus tratos, agressões físicas, ou mesmo a um relacionamento de contendas no qual todos estão infelizes, mas não há esforço de mudança.
- Há casos em que o divórcio não é o problema, e sim a solução. Como, por exemplo, em caso de agressões físicas, tortura psicológica ou coisa semelhante.
- Pessoas divorciadas estão livres para se casarem novamente.
- Os termos do divórcio devem ser claros, e não deixar nenhuma dúvida perante a sociedade. Por exemplo, no Brasil, a sociedade espera que, caso sejam casadas no papel, seja dada entrada no divórcio.
Não é conveniente que pessoas casadas no papel se relacionem entre si sem, pelo menos, terem dado entrada num divórcio, pois transmite uma imagem de promiscuidade.