Pergunta: Sou um monoteísta noaico, mas gosto muito das rezas judaicas. Queria entender o que é um sidur judaico, e se posso utilizá-lo. E se for usar, precisa ser em hebraico ou posso orar em português? Que orações posso fazer?
Essa é uma pergunta bastante pertinente. Antes de tudo, é importante lembrar que não há nenhuma lei que impeça um monoteísta noaico de fazer uma oração judaica.
A confusão começa porque a maioria das pessoas não compreende a diferença entre ser isento, e ser proibido. Mas, até para compreender isso, primeiro é importante entender o que é um sidur, isto é, um livro de orações judaicas.
I – A Origem das Orações e Bênçãos
Maimônides, de abençoada memória, explica o que aconteceu:
“Uma pessoa que era eloquente oferecia muitas orações e solicitações. Uma pessoa que era inarticulada falava tão bem quanto podia e quando desejava.
Semelhantemente, o número de orações dependia da habilidade de cada pessoa. Uns oravam diariamente; outros, muitas vezes…
Quando Israel foi exilado nos tempos do iníquo Nabucodonosor, eles foram espalhados na Pérsia e na Grécia e em outras nações. Filhos lhes nasceram nesses países estrangeiros e a língua daqueles filhos se confundiu.
A fala de cada um era uma mistura de muitas línguas. Ninguém era capaz de se expressar coerentemente em nenhuma língua, mas sim numa mistura conforme é dito: “e seus filhos falavam no meio asdodita, e não podiam falar judaico, senão segundo a língua de vários povos.” [Ne. 13:24]
Consequentemente, quando alguém ia orar, estava limitado em sua habilidade de pedir o que necessitava ou louvar ao Sagrado, bendito seja Ele, em hebraico, exceto se outras línguas fossem misturadas com ele.
Quando Esdras e sua Corte de Justiça viram isso, eles estabeleceram dezoito bênçãos em sequência.” (Mishnê Torá – Livro do Amor – Leis da Oração 1:3-4)
Ou seja, nos tempos antigos, as pessoas faziam apenas orações espontâneas. Pode ser que alguns tenham memorizado algumas orações formatadas para utilizar esporadicamente, mas não havia um livro de rezas.
Com o exílio, muitos judeus passaram a ter dificuldade de rezar porque haviam esquecido o hebraico. Cada um falava seu próprio dialeto, o que dificultava que se juntassem para rezar.
II – Origem do Conteúdo
Nessa época, Esdras o escriba, juntamente com sacerdotes e profetas do povo de Israel, criaram uma oração contendo 18 bênçãos que eram utilizadas para rezar diariamente.
Além disso, também compuseram uma série de outras pequenas bênçãos que eram utilizadas nas mais variadas ocasiões: Por exemplo, para agradecer um alimento, para abençoar crianças, e assim por diante.
Essas orações e bênçãos são de duas naturezas. Umas são puramente com o objetivo de permitir que o povo possa se dirigir ao Eterno sem ter que se preocupar em sempre “inventar o que dizer”, ou mesmo sem correr o risco de dizer algo e não ser compreendido pelo próximo.
Já outras têm relação com a prática de determinados mandamentos. Por exemplo: Há bênçãos específicas para o Shabat, a fim de santificá-lo. Há bênçãos referes a colocar o xale de oração com as franjas nas vestes (sisiyot), entre outros.
Essas bênçãos, a oração diária (hoje chamada de `Amidá) e alguns trechos bíblicos como, por exemplo, a proclamação do monoteísmo em Deuteronômio 6 (chamado de Shemá`, que significa “Ouve”, e é a primeira palavra do versículo de Dt. 6:4), ou salmos utilizados nas mais variadas situações.
III – Evolução e Surgimento do Sidur
Com o passar do tempo, duas coisas começaram a acontecer. A primeira, a escrita foi se tornando cada vez mais fácil, a medida em que a humanidade avançava, barateando o custo e facilitando o processo.
A segunda: Diversas comunidades também começaram a acrescentar seus próprios pequenos ritos, palavras e práticas em meio a essas orações do povo de Israel. Era apenas questão de tempo até que surgisse o primeiro sidur, isto é, o primeiro livro de orações.
O primeiro sidur surgiu das mãos do Hakham Amram Ga’on, na academia de Sura, na Babilônia, no século IX da Era Comum. Sidur significa “ordem”, e era basicamente um livro que trazia a ordem dos trechos a serem lidos, nos serviços comunitários. Ainda levaria muito tempo até que a imprensa surgisse e permitisse que cada pessoa tivesse o seu sidur individual.
Os sidurim continuaram a proliferar e as comunidades judaicas continuaram o processo de aprimorar seus costumes, seja incluindo ou modificando orações e leituras litúrgicas, para melhor se adequarem aos seus ritos locais. Mas, geralmente preservando aquela essência de orações instituídas desde os tempos de Esdras.
IV – O Sidur e o Monoteísta Noaico
Tendo, portanto, entendido isso, pode-se compreender que o sidur contém dois tipos de coisas: Orações e proclamações bíblicas que são puramente litúrgicas, e orações e bênçãos de caráter mais obrigatório, porque estão associadas a determinados mandamentos que foram dados a Israel.
Dito isso, não existe nenhum tipo de proibição ao monoteísta noaico de fazer esta ou aquela bênção do sidur, assim como não há proibição quanto ao cumprimento dos mandamentos, pois Maimônides nos diz:
“Se um Ben Noah [i.e. um monoteísta noaico] deseja realizar um dos mandamentos da Torá para receber recompensa por fazê-lo, não devemos impedi-lo, desde que a faça conforme solicitado.” (Mishnê Torá – Livro dos Juízes – Leis de Reis e Guerras 10:10)
Entenda o leitor que a preocupação da lei judaica não é com o que a humanidade vai fazer ou deixar de fazer. As únicas preocupações sobre fazerem ou não isto ou aquilo diz respeito a estrangeiros morando na terra de Israel, nos tempos em que a Torá é a constituição da terra, para evitar que eles criem uma religião paralela à fé israelita.
V – Questão de Bom-Senso
Isso posto, cabe aqui uma colocação que é puro bom-senso: Há algumas poucas orações e bênçãos nos sidurim (livros judaicos de oração) que falam sobre mandamentos dados ao povo de Israel, ou cujo texto dá a entender que quem está falando é um judeu.
Permita-me aqui dar um exemplo. Quando o judeu se cobre com o xale de oração, recita a seguinte bênção: “Bendito sejas Tu, ETERNO, nossa Autoridade Suprema, que nos separaste através de teus mandamentos, e nos ordenaste nos cobrirmos com franjas.”
É proibido ao monoteísta noaico usar um xale de oração judaico? Não! Porém, se ele irá recitar a bênção, fica estranho dizer “nos ordenaste” se aquele preceito só é obrigatório para os israelitas. Como pode o Eterno te ordenar algo, se aquilo é opcional?
Nesse caso, o melhor a fazer é usar o bom-senso. Ou colocar o xale sem recitar a bênção, ou então modificar um pouco a bênção, de modo a ficar mais ajustada à sua realidade. Por exemplo: “Bendito sejas Tu, ETERNO, nossa Autoridade Suprema, por amor de Quem eu me cubro com franjas.”
VI – O Mesmo Ocorre com os Judeus
Entenda o leitor que não é questão de impedir um monoteísta noaico de recitar as palavras do sidur, mas tão somente de recitar algo que faça sentido, já que não faz sentido se referir a uma ordem inexistente.
Vale ressaltar o seguinte: Essa prática também existe no meio judaico! Sempre que vamos fazer algo opcionalmente, sem termos sido ordenados a isso, omitimos ou modificamos a bênção ou liturgia que faz menção a essa obrigação.
A mesma lógica que se aplicaria a um monoteísta noaico no exemplo dado também vale para uma mulher judia, já que ela também não é obrigada a se cobrir com xale de oração. E se não há obrigação, não faria sentido ela dizer que o Eterno a ordenou a fazer aquilo.
A exceção a isso é aquela pessoa que pensa em se naturalizar judia. Nesse caso, a bênção pode ser feita integralmente a título de treino, porque a pessoa tem consciência de estar treinando a liturgia, e não dizendo algo que não faz sentido.
VII – Bom-senso sim, Medo não!
De qualquer forma, a recomendação do bom-senso não é uma obrigação, e nenhum monoteísta noaico deve achar que isso é um peso, ou ficar com medo de errar nesse sentido.
Não haveria razão para você temer ser punido se você está fazendo algo por amor do Eterno. É preciso perder aquela cultura de fobia do Eterno, que transforma o temor no pânico. Muito cuidado para não cair nessa armadilha!
Se você acabar se atrapalhando ou errar, ninguém irá te punir, pois o mais fundamental na realização de qualquer ato dentro da Torá é o que nós judeus chamamos de kawaná, isto é, a intenção do coração. O Eterno se agrada não é desta ou daquela palavra, nem deste ou daquele rito feito com perfeição, mas sim de um coração sincero que se coloca diante dEle.
A única coisa que tudo que fazemos para o Eterno deve ser feito com seriedade. Isso, claro, não vale unicamente para fazer uma oração, mas sim para qualquer coisa em sua vida espiritual. O Eterno não é carrasco, mas também não é o nosso amiguinho de colégio. Devemos nos sentir na liberdade de quem está perante um Pai amoroso, mas também ter o profundo respeito de quem está na corte do Rei do Universo.
VIII – Sobre Orar em Hebraico
Quanto à dúvida sobre fazer em hebraico, é importante entender que oração não é mantra. Atribuir poder ao hebraico, ou achar que o hebraico é a língua dos anjos, além de fantasioso, pode beirar a idolatria. O hebraico é importante porque é a língua litúrgica do Templo, e porque é algo que nós judeus temos em comum.
Não há nada na lei judaica que obrigue alguém a rezar nesta ou naquela língua. Rezar em português, portanto, não é problema. Aliás, historicamente já foram encontrados sidurim em diversos idiomas, inclusive no Ladino, língua dos judeus de origem hispano-portuguesa.
Porém, há um preceito importante quanto à oração, e que deve ser considerado:
“Qualquer oração que não é [recitada] com a intenção apropriada não é oração. Se alguém ora sem a intenção apropriada, deve repetir suas orações com a intenção apropriada.” (Mishnê Torá – Livro do Amor – Leis da Oração 4:15)
Embora a frase acima fale da obrigação do povo judeu de orar, ela também aponta para uma questão que é puramente bom-senso: Se você vai rezar, seja o que for, certifique-se de que você consegue se concentrar na oração. E isso inclui rezar numa língua que você compreenda, pois oração não é encantamento, nem mantra.