Pergunta: Como é a salvação para o Judaísmo?
Essa é uma pergunta interessante, feita por muitos que vêm de uma cultura cristã, mas ao mesmo tempo de difícil resposta.
I – Conceitos Diferentes
Imagine que uma pessoa que joga futebol entra numa quadra de vôlei pela primeira vez na vida, e logo se vira para um jogador e pergunta: Como vocês fazem gol, no vôlei?
O jogador de vôlei teria, primeiramente, que esclarecer que há um problema conceitual na própria pergunta, porque não existe gol no vôlei. Somente depois de esclarecido isso, ele poderia então explicar como se ganha uma partida.
O problema com a pergunta sobre salvação no Judaísmo é análogo ao exemplo ilustrativo acima. Ao ser indagado sobre como ser salvo, um judeu invariavelmente responderia: Salvo de quê?
Isso porque o conceito de salvação espiritual, no Judaísmo, simplesmente não existe.
II – Salvação, no Tanakh
Mas, o leitor pode indagar. E todas as vezes em que as palavras ‘salvação’ e ‘salvar’ aparecem no Tanakh (Bíblia Hebraica)?
Observe atentamente alguns exemplos:
“Apressa-te em meu auxílio, ADONAY, minha salvação.” (Tehilim/Salmos 38:23)
No salmo acima, Dawid (Davi) pede por salvação. Mas, se observamos o contexto do salmo, é dito:
“Mas os meus inimigos são cheios de vida e são fortes, e muitos são os que sem causa me odeiam.” (Tehilim/Salmos 38:20)
Observe que Dawid queria ser livrado das mãos de seus inimigos.
O profeta Yirmiyahu (Jeremias) diz: “deveras em ADONAY nosso Elohim está a salvação de Israel.” (Yirmiyahu/Jeremias 3:23)
O contexto é a volta do exílio: “Naqueles dias andará a casa de Yehudá com a casa de Israel; e virão juntas da terra do norte, para a terra que dei em herança a vossos pais.” (Yirmiyahu/Jeremias 3:18)
Em todo o Tanakh, a raiz yashá` (יָשַׁע) e seus derivativos (fora nomes próprios) aparecem mais de 350 vezes. Em todas as instâncias, o contexto é livramento da mão de inimigos, de situações perigosas ou angustiantes.
Não existe, em nenhuma instância do Tanakh (Bíblia Hebraica) um uso sequer do termo com conotação de algum tipo de salvação espiritual. Toda a teologia cristã nesse sentido decorre de suas próprias escrituras.
Tendo portanto esclarecido esse ponto, é importante então compreender o que o leitor deseja entender.
No caso do exemplo do futebol e do vôlei, a pessoa desejava entender como se pontua, para fins de ganhar uma partida.
III – Reconciliar-se com o Criador?
Normalmente, quando alguém indaga sobre ‘salvação’ no Judaísmo, está indagando sobre uma das duas coisas: Ou em que momento a pessoa tem uma experiência de começar a se relacionar com o Eterno, algum momento de transformação espiritual, por assim dizer. Ou está querendo indagar como é que a pessoa assegura um bom destino na vida após a morte.
No primeiro caso, novamente se esbarra na questão de que esse conceito não existe no Judaísmo. No Cristianismo, há um entendimento de que o ser humano está, em virtude do pecado, numa condição de desconexão com o Criador, e que a experiência de salvação marcaria o início de uma volta a se relacionar com Ele. E sem a fé no Messias cristão, isso é impossível de acontecer.
No Judaísmo, não existe a ideia de que o Eterno seja inacessível ao ser humano, e que o relacionamento precise ser restaurado. Pelo contrário, encontramos as seguintes afirmações:
“Perto está ADONAY de todos os que o invocam, de todos os que o invocam em verdade.” (Tehilim/Salmos 145:18)
“Para onde me irei do teu sopro, ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás também. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar.” (Tehilim/Salmos 139:7-9)
Ou seja, não apenas o Eterno está acessível a todo aquele que o invocar, como ainda é impossível fugir de sua presença.
Não há momento em que o Eterno não se relacione conosco. Esse relacionamento é inquebrável, por misericórdia dEle, mesmo quando pecamos. Acaso um pai diria ao seu filho: ‘Está tudo terminado entre nós’?
Rambam (Maimônides) diz:
”Se alguém imaginar que nenhuma das criaturas existe à parte dEle, somente Ele continuaria a existir, e a anulação da [existência] deles não anularia a Sua existência, porque todas as criaturas necessitam dEle [para existir], e Ele, bendito seja, não necessita delas nem de qualquer um.” (Mishnê Torá – Sefer haMadá` – Hilkhot Yessodê haTorá 1:3)
Se, por uma fração de segundo, nos fosse possível romper a conexão que temos com o Criador, nós simplesmente deixaríamos de existir imediatamente. Em sendo assim, não há conexão a ser restaurada dentro do conceito judaico.
Os momentos em que o Eterno se diz distante de Israel, ou dos pecadores, é entendido como um antropomorfismo (e portanto algo figurativo), que indica que o Eterno retirará daquela pessoa Suas bênçãos, ou a Sua proteção. Não há um afastamento real, até porque o Eterno não está sujeito à distância física.
IV – Herdar o Mundo Vindouro
Resta ainda a segunda e última possibilidade, e ela é bem simples: Como se certificar de que, no mundo vindouro, seremos contados entre os justos?
O Tanakh nos diz que haverá uma ressurreição dos mortos, o que pode ser observado no cântico de Moshe (Moisés):
“Vede agora que Eu, Eu o sou, e mais nenhum Elohim há além de Mim; Eu mato, e vivifico. Firo, e Eu saro, e ninguém há que escape da minha mão.” (Devarim/Deuteronômio 32:39)
“Aniquilará a morte para sempre, e assim enxugará Adonay ELOHIM as lágrimas de todos os rostos, e tirará o opróbrio do seu povo de toda a terra; porque ADONAY o disse.” (Yeshayahu/Isaías 25:8)
“E muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno.” (Daniel 12:2)
Nessa nova existência, que é explorada na série de artigos Vida Após a Morte: o justo terá vida abundante, ao passo que o iníquo pode, dependendo do caso, ressuscitar ou não.
Tudo depende do juízo do Eterno, e como a pessoa é avaliada. Uma pessoa que viva de forma predominantemente íntegra será contada entre os justos, uma pessoa iníqua, entre os ímpios.
V – Perdão e Graça
Mas, existe também a questão da graça e do perdão do Eterno. Isso pode ser uma surpresa para alguns, mas esse não é um conceito novo introduzido pelo Cristianismo. Pelo contrário, é uma ideia que o Judaísmo sempre trouxe consigo.
Por isso, o salmista diz:
“Se tu, Yah, contares as iniquidades, Adonay, quem subsistirá? Mas contigo está o perdão, para que sejas temido.” (Tehilim/Salmos 130:3,4)
Isso é abordado pelo profeta Yehezqel (Ezequiel):
“Quando Eu também disser ao ímpio: Certamente morrerás; se ele se converter do seu pecado, e praticar a retidão; se esse ímpio… andar nos estatutos da vida, não praticando a iniquidade, certamente viverá, não morrerá. Nenhum de todos os seus pecados que cometeu será lembrado contra ele; praticou a retidão e a justiça, certamente viverá.” (Yehezqel/Ezequiel 33:10,14-16)
“Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões por amor de mim, e dos teus pecados não me lembro.” (Yeshayahu/Isaías 43:25)
Quando nos arrependemos de nossas transgressões, e buscamos corrigir nossos atos, Ele nos perdoa imediatamente.
A ideia não é muito diferente do Cristianismo, visto que esse último teve parte de sua origem no próprio Judaísmo. Mesmo o Cristianismo enfatizando o papel de seu próprio Messias no processo de salvação como algo singular, na prática, também se fala da importância da mudança de vida.
Isto é, se o leitor indagar a um cristão se basta um pedido de perdão, ou se a pessoa precisa mudar de vida, ela indicará a segunda opção. Nesse particular, Judaísmo e Cristianismo estão de acordo.
Com a diferença de que, para o Judaísmo, o processo é mais simples. Não há a necessidade de um intermediário, ou de um sacrifício expiatório para que a humanidade obtenha o perdão. Pelo contrário, tal ideia, para o Judaísmo, seria não apenas estranha, como feriria os princípios básicos do Monoteísmo, pois é dito:
“Eu sou ADONAY, e não há outro; fora de mim não há Elohim… em ADONAY será justificada, e se gloriará toda a descendência de Israel.” (Yeshayahu/Isaías 45:5,25)
Para o Tanakh (Bíblia Hebraica), o perdão do pecado não depende do derramamento de sangue, nem de algum rito expiatório específico. O rito é meramente uma expressão exterior do arrependimento daquele que o pratica.
VI – Conclusão
Em sendo assim, como alcançar a promessa do mundo vindouro?
Arrependendo-se de suas transgressões, e buscando viver uma vida íntegra perante o Criador dos céus e da terra, que é também o Supremo Juiz de todas as coisas.
Ao fazermos isso, Ele nos perdoa, e nos considera como herdeiros da vida. Isso vale não apenas para a vida imediata, e suas bênçãos, como também para o mundo vindouro.