Pergunta: “Recitamos o Shemá` todos os dias, e sempre ouço dizer que é a frase mais importante da Torá. Como entender isso? Qual o significado de dizermos que o Eterno é um?”
Resposta: Essa é uma ótima pergunta!
Para responder a essa pergunta, recorrerei inicialmente a um artigo do rabino Israel Chait, que traduzo abaixo, na íntegra:
I – Sobre a Unidade do Eterno
“Esta afirmação é a afirmação metafísica mais profunda e concisa já feita. Em uma frase, “o Senhor é um”, a ideia metafísica do Eterno é plenamente capturada.
Quando dizemos que o Eterno é um, queremos dizer, como Maimônides afirma: um de todas as maneiras. Isso significa que Ele não é físico, uma vez que qualquer coisa física pode ser dividida em partes. Mesmo a partícula mais primária da natureza não é uma, uma vez que é componente de um todo maior. Não é uma, porque precisa de alguma outra coisa. A verdadeira unidade não precisa de nada e é completa em si e por si própria.
Mas o que dizer de entidades não-físicas, tais como anjos? Esses também não podem ser descritos como um, uma vez que são criados. Para a mente umana, qualquer coisa criada consiste da coisa e de sua existência. Dizemos, por exemplo, que o universo veio à existência. Há o universo e sua existência. O Eterno não veio a existir. Sua existência é intrínseca. [A questão sobre de onde o Eterno veio é, portanto, sem sentido].
Nós também quermos dizer que ele é um, pois se houvesse outro, Ele seria dois. Assim, a expressão “o Eterno é um” nos ensina:
a) Que o Eterno não é físico
b) Que Ele não tem partes
c) Que Ele não é uma parte
d) Que Ele não é criado, isto é, Ele é existência intrínseca eterna
e) Não há outro além dEle.
A afirmação completa também nos ensina que Ele é o nosso Elohim. Nós o reconhecemos por opção. Ele é o Elohim de Israel. Sua providência nos causa identificação de uma forma especial. Esse é o credo singular do judeu.
Posfácio a C: Para que ninguém caia na noção confusa de que um elétron ou quark pode existir em si e por si próprio, permita-me acrescentar um esclarecimento. Qualquer existência física tem uma função, ou então não existiria no universo. Um elétron, por exemplo, tem uma carga, que dá a ele sua função dentro do átomo. Existe, portanto, o elétron, e a sua carga. Novamente há dois. Além disso, toda entidade física existe no espaço-tempo. Depende do espaço-tempo como pano-de-fundo de sua existência. Portanto: Não é um.” (On the Oneness of God – Jewish Times vol. XIV no. 3)
II – A Ausência do Físico
A resposta do rabino Israel Chait identifica alguns elementos importantes. Todos eles são conceitos que derivamos da revelação que nos foi dada no Tanakh (Bíblia Hebraica).
Primeiramente, a ausência de um aspecto físico. A Torá diz:
“No princípio criou Elohim o céu e a terra.” (Bereshit/Gênesis 1:1)
Mesmo tendo essa frase algumas leituras diferentes (abordadas na série Segredos do Eden), a essência é a mesma: nada do que existe no universo é sem origem.
Se o universo tem um Criador, que o precede em existência, então a existência do Criador não está atrelada à do universo. E se o universo (ou mesmo universos) engloba(m) tudo aquilo que é físico, então disso observamos que o Eterno não é físico.
Esse também é o sentido da onipresença do Eterno, que não pode ser definida no sentido de que o Eterno esteja em todo lugar, mas sim que tudo lhe é acessível, justamente porque Ele não está confinado a um local.
Esse é o sentido do texto do salmista:
“Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no sheol a minha cama, eis que tu ali estás também.” (Tehilim/Salmos 139:8)
Ainda sobre essa questão, a Mishnê Torá cita o Tanakh com provas adicionais:
“Eis que é afirmado explicitamente na Torá e nos Profetas que o Sagrado, Bendito seja Ele, não tem corpo ou forma física, conforme é dito: “Porque só ADONAY é Elohim, em cima no céu e em baixo na terra.” [Dt. 4:39] e um corpo não pode existir em dois lugares [ao mesmo tempo.]
Conforme é dito: “pois nenhuma figura vistes” [Dt. 4:15] e é dito: “A quem, pois, me fareis semelhante, para que Eu lhe seja igual?” [Dt. 40:25] Se Ele tivesse corpo, se assemelharia a outros corpos.” (Sefer haMadá` – Yessodê haTorá 1:8)
III – Indivisível
Analisemos agora a questão do Eterno não ter partes. Isso pode ser deduzido de duas maneiras, igualmente a partir do próprio Tanakh:
“Por isso hoje saberás, e refletirás no teu coração, que só ADONAY é Elohim, em cima no céu e em baixo na terra; nenhum outro há.” (Devarim/Deuteronômio 4:39)
“Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que Eu sou Elohim, e não há outro Elohim, não há outro semelhante a mim.” (Yeshayahu/Isaías 46:9)
Se o Eterno pudesse ser divido em partes, ou em pessoas, teríamos que cada pessoa seria, em si mesma, uma divindade ou sub-divindade.
Compare, por exemplo, a visão judaica com o dogma da Trindade, que é pilar central da fé do Catolicismo:
“As pessoas divinas não dividem entre Si a divindade única: cada uma delas é Deus por inteiro” (Profissão de Fé do Vaticano – Capítulo 1 – Artigo 1 – Parágrafo 2 – 2:253)
Mesmo que negue filosoficamente, na prática o Catolicismo acaba na prática se transformando numa espécie de triteísmo, e o conceito do Eterno se torna semelhante a um panteão de agentes, mesmo que tais venham a agir sem unicidade de propósito. Nada disso é compatível com o pensamento judaico.
Para o judeu, a Torá é muito clara: O Eterno é um, e não há outro. Não há como transformá-lo em dois, ou três, ou mesmo atribuir a ele um inimigo cósmico, sem ferir a essência do monoteísmo.
IV – O Sentido do Shemá`
Com isso, pode-se perceber o sentido real do Shemá`, a proclamação mais importante da fé monoteísta do povo judeu.
O Eterno é UM, porque não depende de nada, nem de ninguém. Sua existência não conhece limites. Ele não tem iguais, co-iguais, divindades subalternas, nem tampouco pode ser dividido.
O Shemá`, portanto, é mais do que uma confissão monoteísta perante um mundo politeísta, nem a resposta a um monoteísmo impraticável.
O Shemá` é um princípio filosófico fundamental sobre o qual se pauta todo o conhecimento que temos, e que é possível ser adquirido, acerca do Criador.
E conhecer o Criador é o mandamento mais fundamental da Torá, conforme é dito no Sefer haMiswot:
“A primeira miswá é que somos ordenados a adquirir conhecimento acerca da natureza de Elohim, isto é, compreender que Ele é a Causa original e a Fonte da existência de tudo o que há. A fonte para essa miswah está na frase do Altíssimo: ‘Eu sou Adonay teu Elohim.'” [Ex. 20:2]” (Mandamento Positivo 1)