“Vejo muita gente argumentando coisas a partir de Midrash e de Hagadá. E também outros que dizem que há Midrashim e Hagadot que trazem informações que não encontramos na Torá, como podemos entender isso?”
Resposta: Essa é uma ótima pergunta, e merece ser explorada detalhadamente. Desde o que significam essas palavras, como surgiram, e o papel delas dentro da fé judaica.
I – Introdução
O termo Midrash vem da raíz hebraica darash (דרש) que significa busca ou pesquisa. Trata-se do termo genericamente aplicado a estudos feitos a partir da Escrituras, independentemente de sua natureza.
Já o termo Hagadá, ou Hagadá vem do verbo hebraico lehaguid (להגיד) que significa narrar ou relatar. Ou seja, Hagadá é o termo genérico usado para uma narrativa, seja ela histórica, ou seja um conto.
II – A Definição
A melhor definição de Midrash, na opinião deste autor, vem curiosamente da Escola Mística. Pois, nos tempos antigos, as Escolas Mística e Racionalista estavam de acordo quanto o que eram tais coisas.
Observe o que diz Rav Moshe Ben Nahman (1194-1270), conhecido como Ramban:
“Temos um terceiro livro chamado Midrash, significando sermões. É exatamente como se um bispo se levantasse e fizesse um sermão, e um dos ouvintes que se agradou do sermão o registrasse. Acerca desse livro, se alguém acredita nele, tudo bem. Se não acredita nele, não ficará [espiritualmente] prejudicado.” (Disputa em Barcelona)
Ou seja, Midrashim no geral são como sermões.
E quanto às Hagadot? Eram simplesmente as estórias ilustrativas que faziam parte desses Midrashim!
O leitor já viu alguém que fazia um sermão se utilizar de um conto, estória, parábola ou mesmo algo do folclore popular? O objetivo não é de narrar fatos, mas sim de usar essas estórias como artifício para ilustrar um ponto.
Criar, e contar contos é uma das formas mais antigas de se ensinar o povo. E era ainda mais comum numa época em que não havia acesso a livros como hoje, nem a alfabetização tinha índices altos como hoje. As estórias eram um artifício para facilitar a memorização, ou para facilitar a exposição de um dado ponto de vista.
Além disso, os sermões dos Midrashim não eram, na grande maioria das vezes, uma tentativa de interpretar um texto. Isto é, não eram obras de exegese.
III – Composição: Realidade x Distorção
Quem melhor definiu a maneira como os Midrashim eram compostos foi Rav Moshe Ben Maimon – o Rambam, que disse:
“[Nossos sábios] usam o texto bíblico como um tipo de linguagem poética, e não pretendem com isso interpretar o texto… Esse estilo era popular nos dias antigos. Todos o adotaram da mesma maneira que os poetas… Nossos sábios dizem, acerca das palavras: “E entre as tuas armas [azenekha] terás uma pá” [Dt. 23:14] – Não leia azenekha (tuas armas) mas oznekha (teus ouvidos) – se você ouvir uma pessoa proferindo algo vergonhoso, coloque teus dedos em teus ouvidos. Agora, eu me pergunto se essas pessoas ignorantes [que consideram esses comentários como literais] acreditam que o autor desse dito o considerou como a verdadeira interpretação do versículo citado, e como o sentido desse preceito… Não posso pensar que qualquer pessoa cujo intelecto é saudável possa aceitar isso. O autor empregou o texto como uma bela frase poética, para ensinar uma excelente lição moral poeticamente ligada ao texto acima. Da mesma forma se deve compreender a frase: ‘Não leia isso, mas aquilo’ sempre que ocorre no Midrash.” (O Guia dos Perplexos – Livro III – Capítulo 43)
Observe o exemplo que deu Rambam. Ninguém em sã consciência irá achar que a interpretação exegética de armas é orelhas. Ou que isso seria algum tipo de mensagem oculta da Torá. Não! O Midrash é apenas uma analogia poética.
Semelhantemente, os Midrashim estão cheios de analogias de coisas antigas com situações mais recentes. Por exemplo, a analogia dos três poços de Ya`aqov (Jacó) com os três Templos. Mas isso não quer dizer que os poços de Ya`aqov (Jacó) sejam uma profecia sobre tal evento. Seria tão absurdo quanto dizer que a criação do Shabat era uma profecia sobre os sete anos de seca no Egito.
Da mesma maneira, há Midrashim que foram criados em tempos de grande angústia, quando os autores tinham expectativa de que se levantasse um líder político-militar da Casa de Dawid (Davi) para lhes resgatar da opressão estrangeira. Alguns autores elaboraram Midrashim comparando a trajetória de personagens bíblicos, ou mesmo de Israel, com os anseios pela vinda de Mashiah, isto é, desse ungido libertador.
Infelizmente, isso acaba sendo usado maliciosamente por seitas cristãs para afirmar que alguns rabinos ‘reconheciam’ profecias ocultas sobre essa figura através dos Midrashim. Isso é tão absurdo quanto alguém pegar uma parábola ou texto poético de um pastor cristão e usar para dizer que eles reconhecem Maomé como profeta. Uma salada indigesta de distorções maliciosas!
IV – Por que o Talmud tem Midrashim e Hagadot?
Mas, o leitor pode estar se perguntando: Se os Midrashim e Hagadot são somente isso, o que estão fazendo no Talmud? Essa é uma ótima pergunta. Para entender, precisamos de um pouco de história.
Quando pensamos na Mishná e no Talmud Yerushalmi (Talmud de Jerusalém), observamos que o enfoque era muito mais a questão legal do que qualquer outra coisa. Isso tem a ver com o período histórico em que foram produzidos. Não havia, na época, uma ameaça global à existência do povo judeu.
Quando a academia de Sura produziu o Talmud Bavli, que é o mais citado, havia um grande medo de que a perseguição aos judeus fizesse com que todo o conhecimento se perdesse. Por essa razão, os escribas de Sura registraram absolutamente tudo o que havia de conhecimento judaico.
O Talmud Bavli, portanto, nada mais é do que uma enciclopédia do conhecimento da comunidade dos judeus da Babilônia. É por essa razão que nele encontramos um pouco de tudo: Conselho matrimonial, contos, receitas de medicamentos, biologia, astronomia, sermões, interpretações de textos, crendices populares (nem sempre alinhadas com a Torá) e também as discussões legais e a halakhá. Tudo o que os escribas de Sura achavam importante compilar, o fizeram.
V – Como devemos entender Midrashim e Hagadot?
Qual deve ser, portanto, a nossa atitude quanto a Midrashim e Hagadot?
Para responder, selecionei algumas respostas dadas por Hakhamim (sábios) nos tempos antigos, a fim de ilustrar a questão.
– Rav Sherira Gaon (906-1006)
“Esses pontos trazidos de versículos das Escrituras chamados Midrash e Hagadá são suposições. Algumas são precisas, tais como a afirmação de Rabi Yehudá de que a porção de Shim`on estava inclusa na de Yehudá, pois a encontramos corroborada no livro Yehoshua`, mas muitas não são. Seguimos o seguinte princípio: “Cada qual será louvado segundo o seu entendimento” [Pv. 12:8] Quanto às Hagadot dos alunos dos alunos – Rabi Tanhuma, Rabi Oshaya, e outros – na maioria delas, [os fatos reais] não são conforme são expostos. Semelhantemente, não nos apoiamos em Hagadot. As corretas, dentre elas, são as sustentadas pela inteligência e pela Escritura. Não há limite [de criatividade] para Hagadot.” (Sefer HaEshkol, Hilkhot Sefer Torá, p. 60a)
– Rav Hai Gaon Ben Sherira (939-1038)
“Hagadá e Midrash, e isso diz respeito mesmo àquelas escritas no Talmud, se não funcionam adequadamente e se estão erradas, não se deve apoiar nelas, pois a regra é: Não nos apoiamos em Hagadá. Contudo, acerca do que está abrigado no Talmud, se encontrarmos uma forma de remover seus erros e fortalecê-las, devemos fazê-lo, pois se não houvesse uma lição a ser derivada dela, não teria sido incorporada. Acerca do que não está no Talmud, investigamos. Se é correta e adequada, a expomos e ensinamos. Caso não seja, não prestamos atenção nela.” (Sefer HaEshkol, Hilkhot Sefer Torá, p. 60a)
“Saiba que as afirmações de Hagadá não são como aquelas de shemuá` (ouvidas e transmitidas). Ao contrário, são casos onde cada indivíduo expôs o que veio à sua mente, da forma como podia ser dito, e não um assunto decisivo. Semelhantemente, nós não nos apoiamos nelas.” (Comentários sobre Haguigá)
“Se as Hagadot que estão escritas no [Talmud] não são fundamentadas [logicamente] ou são errôneas, não se deve apoiar nelas, pois há uma regra: Não nos apoiamos em Hagadot. Contudo, o que quer que tenha sido afirmado e que sejamos obrigados a remover o erro [através de interpretação], devemos fazê-lo. Pois se não possuísse substância, não teria sido afirmado no Talmud. Se não encontramos uma forma de remover seu erro [através da interpretação], torna-se um dito não aceito.” (ibid)
– Rav Moshe Ben Maimon (1135-1204)
“Acerca das palavras dos sábios, as pessoas podem ser divididas em três categorias: a primeira… acredita nelas literalmente e não as vê como contendo uma mensagem oculta. Eles as vêem como fato. Eles o fazem porque não compreendem sabedoria e estão longe do entendimento. Eles não estão naquele nível que daria a eles a habilidade de discernir a intenção verdadeira por eles próprios, e não têm mestres que dêem a eles essa habilidade. Eles estão convencidos de que os sábios não tinham nenhuma intenção do que eles compreendem e que todas as palavras dos sábios devem ser tomadas literalmente. Um argumento que até uma pessoa simplória – quem dirá um sábio – rejeita, pois um exame de alguma parte da Hagadá leva a concluir que não pode existir pessoas que as aceitam plenamente ou as vêem como questões de fé.
Deve-se ter pena de tais pessoas de mente fraca pois, em sua tolice, acham que estão honrando e elevando as palavras dos sábios, quando na realidade, elas os arrastam para o nível mais baixo…
Eles destróem a glória da Torá e escurecem o seu brilho, fazem da Torá do Eterno o oposto do que era a intenção. Ele afirmou na Torá perfeita acerca das nações que ouvem acerca de todos esses estatutos, que dirão: ‘Este grande povo é nação sábia e entendida.’ [Dt. 4:6] Mas quando as nações ouvirem como esse grupo relata as palavras dos sábios de maneira literal, dirão: ‘Este povo insignificante é nação tola e ignorante.’ A maioria desses expositores explicam ao público o que eles próprios na realidade não entendem. Quem dera ficassem quietos ou dissessem: ‘’Não entendemos o que os rabinos queriam dizer nessa afirmação ou como interpretá-la.’” (Introdução ao Pereq Heleq)
Rav Shemu’el Ben Hofni Gaon (século XI):
“Se as palavras dos [sábios] antigos contradizem o intelecto, não somos obrigados a aceitá-las.” (Teshuvot al Haguigá 4b)
“E é impossível para nós acreditar na veracidade de um assunto para o qual há coisas que corroboram com sua negação, simplesmente porque alguns dos antigos [sábios] o disseram. De fato, é necessário que contemplemos o assunto com nosso intelecto. Se uma prova for encontrada para sua veracidade, o aceitamos. Se houver corroboração para sua possibilidade, acreditamos nele como algo possível. Se for provado ser impossível, nós o consideramos impossível.” (Perush haTorá)
– Rav. Shemu’el haNaguid (993-1055)
“Hagadá é toda explicação que vem do Talmud acerca de qualquer assunto que não seja um mandamento. Isso é Hagadá; e deves aprender dela somente o que vem à mente… O que [os sábios] interpretaram em versículos [da Escritura] é segundo o que ocorria a cada um, e o que via em sua mente. E segundo o que vem à mente a partir de tais interpretações, aprende-se. E não se deve apoiar no restante.” (Introdução ao Talmud)
– Rav YeHiel Ben Yosef (1225-1268)
“Palavras de Hagadá, para aproximar o coração do homem… Se desejares, acredite nelas. Se não desejares, não acredite nelas, pois não há lei que foi determinada baseada nelas.” (Sefer haVikuah)
VI – Conclusão
Como se pode perceber, nos tempos antigos a Escola Mística e a Escola Racionalista estavam de acordo com relação à função e espaço de Midrashim e Hagadot no Judaísmo.
Infelizmente, contudo, alguns grupos místicos da atualidade, bem como seitas de outras religiões, têm distorcido tais coisas e as tomado como verdades literais, ou como uma espécie de complemento do Tanakh. E isso tem confundido a muitos que estão em teshuvá e ainda não haviam tido esclarecimentos sobre o tema. Mas é importante que haja clareza do que são.
Midrashim são basicamente sermões. Em sua maioria, homiléticos. Isto é, escritos para inspirar, motivar e não para interpretar um texto. Mesmo nos poucos casos em que são interpretativos, expressam a opinião de quem os escreveu, e não devemos aceitá-los prontamente, sem verificar o contexto, estudar, refletir e observar se estão de acordo com a razão e o conhecimento atual.
Hagadot são basicamente estórias. Parábolas, lendas, folclores e narrativas ilustrativas que eram usadas como artifício pelos sábios da antiguidade para ajudarem o povo a memorizar certos conceitos, e para inspirá-los a fazerem o bem. Não são textos históricos, e não devem ser tratados como tais, nem como detalhes adicionais à narrativa do Tanakh.
É saudável estudar Midrashim e Hagadot, mas tão somente quando o leitor é capaz de entender o que são. Isto é, textos geralmente homiléticos e poéticos, cujo objetivo é transmitir uma lição, e não narrar um fato. E o leitor precisa estar disposto a extrair qual é o ensinamento que o sábio desejou transmitir com aquele Midrash, ou ao relatar aquela Hagadá. Se não for capaz de fazer isso, é melhor sequer estudar tais coisas.
Vale ressaltar ainda que, pela lei judaica, não há nenhum prejuízo se alguém preferir simplesmente ignorar Midrashim e Hagadot, e se focar noutras questões. Pois, como disseram os sábios, a questão é de foro íntimo e pessoal.
Literalizar o Midrash ou as Hagadot é uma das formas mais rápidas de dar vazão a heresias e destruir a fé judaica. E Rambam (Maimônides) chama os que fazem isso de tolos que lançam trevas sobre a Torá.
Não se pode, contudo, culpar o Midrashim e as Hagadot pelo mau uso delas. Bem utilizadas, podem ser fontes preciosas de sabedoria. Mal utilizadas, são fonte de destruição.
É como ter em mãos uma faca. Ela pode ser usada para salvar uma vida em uma cirurgia, para proteger um inocente de uma agressão, e para preparar um alimento para quem tem fome. Mas, pode ser também utilizada para ferir um terceiro. Tudo depende de quem a usa.