I -Introdução
O artigo sobre o corante carmim, que foi muito bem recebido e elogiado, gerou por parte de alguns uma indagação que acredito ser bastante pertinente: É possível viver kashrut sem os critérios estabelecidos pela Corte Mosaica (Sanhedrin) dentro da halakhá para contaminação mínima, máxima, e sobre o que é e o que não é impuro? O que isso implicaria?
É importante ter em mente, primeiramente, que esses critérios não visam estabelecer o máximo que uma pessoa pode fazer, mas sim um mínimo, que serve de denominador comum para todo o povo judeu.
Para demonstrar a importância dessas referências, gostaria de fazer aqui um exercício de imaginação com vocês, leitores, sobre o que seria a kashrut sem os critérios estabelecidos pela Corte Mosaica.
Se alguém desejasse viver sem eles, seria necessário rever as questões abaixo indicadas:
II – Nem Frango, nem Peru
A primeira coisa que uma pessoa que não seguisse a halakhá da Corte Mosaica precisaria fazer é abdicar de comer frango ou peru.
Pouca gente sabe, mas a única coisa em que se apegar para poder declarar que frango e peru sejam aves kasher é a Messorá (tradição judaica).
Isso ocorre porque nós não temos como saber a identidade de todas as aves impuras da Torá. Muitos dos termos que aparecem no hebraico são misteriosos, pois seu sentido original se perdeu, e por isso, inclusive, recebem várias traduções. Já na Idade Média, vários exegetas não-rabínicos, como por exemplo o autor caraíta Daniel Al-Qumisi, apontavam para o fato de que não há fonte que identifique tais aves. Por essa razão, recomendavam a abstinência do frango, por exemplo.
Sem a Messorá (tradição), a única forma, portanto, de se ter certeza de que uma ave é kasher é se ela é mencionada como tal pela Torá. É o caso apenas de três aves: pombos, rolas e codornas.
Alguns tentam argumentar que o frango seria permitido, porque assim como a codorna, seria da família Galliforme (galináceos). Contudo, o avestruz também é da família Galliforme (galináceos) e é proibido pela Torá.
Fato é, portanto, que qualquer pessoa que afirmasse não seguir a Messorá (tradição) estabelecida pela Corte Mosaica (Sanhedrin) e comesse frango ou peru estaria simplesmente sendo seletivo naquilo que segue da Messorá.
Uma pessoa que desejasse observar a Torá sem Messorá (tradição), supondo que isso seja possível, precisaria obrigatoriamente se abster de tais aves.
III – Bye, Bye Ovos
Ovos seriam outro problema para quem não segue as deliberações da Corte Mosaica. Por duas razões.
A primeira já foi exposta acima. Considerando que não há como ter certeza, somente pela Torá, que a galinha é um animal kasher, então também não há como considerar que ovos sejam puros.
Outro problema ocorreria também para aquelas pessoas que comem qualquer produto que leve ovos e que não é feito em casa.
Frequentemente, os ovos vêm com um pontinho de sangue, ou com filamentos avermelhados.
A Torá proíbe claramente o consumo de sangue:
“Tão-somente guarda-te de comeres o sangue; pois o sangue é a vida; pelo que não comerás a vida com a carne.” (Devarim/Deuteronômio 12:23)
Se uma pessoa rejeita o limite estabelecido pela Corte Mosaica (Sanhedrin) quanto ao limite máximo de contaminação, isso significa que qualquer quantidade de sangue é suficiente para tornar o alimento impuro.
Em sendo assim, qualquer alimento que leve ovos e não seja preparado em casa pela própria pessoa estaria automaticamente proibido, pois não há garantias de que não haja sangue.
IV – Abster-se de Industrializados em Geral
Não é segredo que produtos industrializados em geral certamente contêm partes de insetos e roedores em sua composição, pois é impossível evitar a contaminação.
O FDA (Food and Drug Administration) dos EUA determina, por exemplo, alguns limites máximos aceitáveis para alimentos:
– Especiarias: Até 30 fragmentos de insetos e 1 pelo de roedor para cada 10g
– Chocolate: Até 60 fragmentos de inseto e 3 pelos de roedor para cada 100g
– Sucos cítricos: Até 5 ovos de mosca por 250ml
– Macarrão: Até 225 fragmentos de insetos e 4,5 pelos de roedor para cada 225g
Entre muitos outros…
(Fonte: http://www.fda.gov/food/guidanceregulation/guidancedocumentsregulatoryinformation/ucm056174.htm)
Do ponto de vista da kashrut judaica, isso não é um problema, devido à halakhá que estipula 1/60 de tolerância quando não há interferência no sabor.
A Torá por si só, contudo, jamais estipula limite mínimo. Isso significa que qualquer produto industrializado seria terminantemente proibido para quem afirma cumprir a Torá.
V – Uso Deliberado de Fontes Impuras
Alguns me comentaram que a contaminação acidental é compreensível, mas indagaram se seria adequado que o limite fosse aplicado para casos onde fontes impuras sejam usadas intencionalmente (coisa que a halakhá não discerne).
Porém, isso também geraria inúmeros problemas.
O mais grave deles seria o açúcar. Não somente seria ele proibido, como também isso impediria o consumo de praticamente todas as balas e doces. Mesmo receitas caseiras que levem coisas como leite condensado ficaram proibidas.
A razão para isso é que muitas empresas utilizam carvão de ossos de animais para fazer a filtragem do produto.
A revista “Vegeterian Journal” afirma:
“…aqueles que desejam evitar o processo do carvão de ossos (deve) comprar açúcar orgânico e consumir alimentos que listam somente açúcar orgânico ou suco evaporado de cana como adoçantes.”
Esse mesmo processo é usado para a filtragem de melaço de cana. O melaço também pode ser usado como base para outros ingredientes comuns, tais como, por exemplo, o glutamato monossódico, um realçador de sabor bastante presente.
VI – Outros Aditivos
Há ainda muitos outros aditivos que podem vir de fontes impuras, e que frequentemente estão presentes em alimentos industrializados. Exemplos:
– Cálcio
– Estearato de Magnésio
– Excipientes
– Glicerina
– Lactose
– Sulfato de Glucosamina
– Vitamina A
– Vitamina B
– Zinco
Entre vários outros que, mesmo em quantidade irrisória para os padrões da kashrut estabelecidos pela Corte Mosaica, precisariam ser evitados por aqueles que dispensarem tais padrões.
Para a Corte Mosaica, além da regra da quantidade ser desprezível, em muitos casos reconhece-se que tais coisas são como dejeto (tinofet), pois já foram transformados e não são mais substâncias comestíveis.
VII – Mel
Não se poderia deixar de mencionar o próprio mel e outros derivativos, como a cera da abelha, a geléia real e o própolis. Considerando que todos eles contêm enzimas produzidas pela própria abelha, e que a abelha é um animal impuro, eles deveriam ser evitados.
Uma publicação da Editora Abril resume bem como é feito o mel:
“Glândulas localizadas na cabeça das abelhas secretam duas enzimas que reagem com o açúcar do néctar. Uma enzima, chamada invertase, transforma o néctar em glicose e frutose. A outra, glicose oxidase, lhe confere acidez, impedindo sua fermentação.”(Fonte: http://mundoestranho.abril.com.br/materia/como-efeito-o-mel)
Fora o fato de que o termo mel (devash), utilizado na Torá, pode – muitos argumentam – ser uma referência ao mel de tamareiras. E mesmo o uso de mel de abelhas na narrativa do Tanakh não indicaria uma aprovação de uso, visto que frequentemente os israelitas no Tanakh agiram contra a recomendação do Eterno.
Por exemplo, Shimshon (Sansão) certamente comeu mel de abelhas. Mas, também casou-se com uma estrangeira, coisa que a Torá proíbe. Ou seja, seu ato por si só não torna a prática aceitável.
VIII – Comprar vegetais cultivados por outros? Impossível!
Observe o que diz a Torá:
“E, se dos seus cadáveres cair alguma coisa sobre alguma semente que se vai semear, será limpa; Mas se for deitada água sobre a semente, e se dos seus cadáveres cair alguma coisa sobre ela, vos será por imunda.” (Wayiqrá/Levítico 11:37-38)
Eu pergunto ao leitor: Como garantir que não houve contato de sementes úmidas com o cadáver de animais impuros? Pela Torá, isso torna a semente imunda. E, por consequência, aquilo que dela nasce é inadequado para consumo.
Sem as regras estabelecidas pela Corte Mosaica (Sanhedrin), como poderia uma pessoa assegurar que não está comendo produto de semente impura?
A única forma de fazer isso seria cultivando seus próprios alimentos!
Ou seja, estaria descartada a hipótese de se comprar vegetais de qualquer outra pessoa.
IX – Contaminação Evitável?
Como dito no texto sobre o corante carmim, a questão do quanto é possível evitar 100% de uma contaminação é polêmica. A Torá, no entanto, não faz essa distinção, nem estabelece percentual.
Pense, contudo o leitor. Será que, desde o plantio, colheita, moagem, preparo, cozimento e serviço, é fácil evitar a contaminação? Especialmente de insetos, roedores e outros?
Se até mesmo hoje, em pleno século XXI, o país mais desenvolvido do mundo tem limites toleráveis por considerar que é impossível evitar tal coisa, imagine qual era a realidade das pessoas nos tempos da Torá.
E mais: Jogará o leitor fora 10 kilos de alimento se uma mosquinha de banana cair dentro? Se a Torá for seguida sem as instruções da Corte Mosaica (Sanhedrin), é isso que precisará ser feito.
X – Alternativa Possível?
Qual seria a outra alternativa?
A própria pessoa estabelecer um percentual ou limite do que é razoável por conta própria. Ou tecer seus próprios critérios. Que é provavelmente a hipótese mais razoável, supondo que alguém tentasse viver kashrut sem a halakhá.
Mas aí devemos nos indagar: Que autoridade teria a pessoa para fazer tal coisa?
A Corte Mosaica (Sanhedrin) tem uma autoridade devidamente estabelecida desde os tempos de Moshe (Moisés) para dirimir dúvidas e estabelecer padrões para a observância da Torá. Essa autoridade foi concedida pela própria Torá:
“Quando alguma coisa te for difícil demais em juízo, entre sangue e sangue, entre demanda e demanda, entre ferida e ferida, em questões de litígios nas tuas portas, então te levantarás, e subirás ao lugar que escolher o ADONAY teu Elohim; E virás aos kohanim halewiyim, e ao juiz que houver naqueles dias, e inquirirás, e te anunciarão a sentença do juízo. E farás conforme ao mandado da palavra que te anunciarem no lugar que escolher ADONAY; e terás cuidado de fazer conforme a tudo o que te ensinarem. Conforme ao mandado da Torá que te ensinarem, e conforme ao juízo que te disserem, farás; da palavra que te anunciarem te não desviarás, nem para a direita nem para a esquerda.” (Devarim/Deuteronômio 17:8-11)
Para maiores informações, recomenda-se o material Halakhá, Torá e Corte Mosaica, disponível neste site.
XI – Conclusão
Como se pode perceber, sem a Messorá (tradição) e os limites razoáveis estabelecidos pela Corte Mosaica (Sanhedrin), seria praticamente impossível para qualquer pessoa escapar de ser obrigada a ter uma alimentação vegetariana, e sem o uso de qualquer coisa industrializada, e cultivada por ela mesma! Em larga escala, tais critérios seriam bastante problemáticos.
Sem contar a dificuldade que haveria quando uma pessoa da comunidade visitasse outra. Como afirmar que ambos seguem o mesmo padrão de kashrut? Sem uma padronização central, isso também seria impossível.
Concluímos portanto que a kashrut, sem a halakhá, é absolutamente impraticável.
Como se pode perceber, os limites razoáveis estabelecidos pela Corte Mosaica (Sanhedrin) são sábios e muito necessários. E em nada comprometem ou afetam a essência do alimento em si.
Mas, vale relembrar: Os limites são o mínimo. E não o máximo. Uma pessoa certamente pode, por conta própria, se abster de qualquer coisa que a Corte Mosaica (Sanhedrin) permitir. Muitos grupos, inclusive, o fazem.
Desde que se saiba que é uma rigorosidade pessoal ou de uma comunidade específica, não há problema algum.