Introdução
A primeira reflexão sobre a diferença entre as escolas mística e racionalista foi muito bem recebida, e creio que ajudou muita gente a ter uma ideia do contraste entre os dois posicionamentos. Isso me motivou a escrever outras a respeito do tema, para ajudar ainda mais a esclarecê-lo.
Na reflexão de hoje, falaremos a respeito de sacrifícios e orações. Esse é um tema importante, pois se refere à essência do Judaísmo, e corresponde a uma parte importante observância diária da Torah. Analisaremos dois dos principais expoentes das duas escolas: Rambam (Maimonides), por parte da escola racionalista, e Ramban (Nachmanides), por parte da escola mística.
Mais uma vez, devo esclarecer que a essência da reflexão não é de minha autoria, mas sim do rabino Dr. Israel Drazin. Considero Rav Drazin uma excelente fonte para discorrer sobre o assunto, pois se trata de um rabino racionalista, mas que estudou em yeshivah haredi, e que portanto conhece bem a escola mística.
A reflexão é extraída do texto “Can we bewitch God with sacrifices, prayers and incantations?” (Podemos enfeitiçar o Eterno com sacrifícios, orações e encantamentos?), um comentário da parashá de Wayiqra, extraído de seu livro “A Rational Approach to Judaism and Torah Commentary”.
Nele, Rav Drazin sintetiza a visão das duas escolas, através dos autores acima mencionados.
A Visão Racionalista de Maimônides
“Os judeus divergem sobre o assunto da oração, assim como em muitos outros assuntos, uma vez que não há quase nada no Judaísmo que demanda um catecismo de crenças. Maimonides (1138-1204) e Nachmanides (1194-1270), por exemplo, tomaram posições opostas. E há outras opiniões sobre o assunto.
A visão de Maimonides pode ser resumida brevemente a partir do seu Guia dos Perplexos. É encontrada em seções como 3:16,32 e 46.
- O Eterno é um e onipotente. Isso significa que o Eterno tem todo o poder. Ele pode fazer o que desejar. Ele não precisa de absolutamente nada de ninguém nem de coisa alguma.
- O Eterno é onisciente. Isso significa que Ele sabe todas as coisas. Não há nada que um humano possa dizer a Ele que Ele não saiba.
- O Eterno é bom. Tudo o que Ele faz é bom. Não há mal associado com o Eterno.
- O Eterno criou o mundo para funcionar segundo as leis da natureza. Não há necessidade de mudar essas leis, uma vez que o Eterno considerou tudo o que vai acontecer antes de instituí-las. As leis da natureza são boas.
Apesar de ser verdade que as pessoas sofrem mal, o mal não vem do Eterno [diretamente]. Há três fontes para o mal:
(1) Uma vez que todas as pessoas são diferentes umas das outras, nenhuma lei, humana ou divina, pode ser criada que beneficiará a todos da mesma forma. Na realidade, muitas leis que são extremamente benéficas para a maioria dos humanos será danosa para algumas pessoas. Assim, as leis da natureza são boas para o mundo como um todo, mas algumas pessoas serão feridas por elas. Um exemplo são furacões que beneficiam a terra, mas cuja força pode ferir e até mesmo matar pessoas.
(2) O mal pode também vir de outras pessoas, tal como quando um indivíduo fere outro.
(3) Alguém também pode fazer o mal a si próprio, tal como quando come em excesso ou não se exercita.
… De acordo com esse pensamento, qualquer tentativa de mudar as coisas por meio de oração, sacrifício, magia ou encantamento é arrogante. A pessoa que faz isso está sugerindo que o Eterno agiu de forma não-sábia ou de maneira ruim. Isso também implica que ele, o humano, é mais sábio do que o Eterno e sabe melhor do que o Eterno como o mundo deve ser gerenciado.
Maimonides suporta sua posição com citações de vários profetas que falaram contra sacrifícios. Ele afirma que apesar do Eterno não ter nenhuma necessidade para sacrifícios e orações, Ele permite aos humanos sacrificarem e orarem porque as pessoas precisam delas. Essas atividades ajudam muitas pessoas a se aproximarem do Eterno.
Apesar de Maimonides não usar esses termos, ele provavelmente concordaria que o benefício dos sacrifícios e orações é sugerido pelas palavras hebraicas para tais atividades. A palavra hebraica para sacrifício é korban, que significa aproximar-se: sacrifícios e orações, apesar de não terem utilidade para o Eterno, ajudam as pessoas a se sentiram próximas do Eterno. A palavra hebraica para oração é tefilah, da raiz pll, que singifica “julgar”, pois a oração e sacrifícios podem ajudar as pessoas a julgarem a si próprias. Eles podem usar as atividades como períodos de auto-reflexão.
Maimonides não vê nenhum valor em magia ou encantamentos. Eles são totalmente tolos e semelhantes à idolatria. Ainda assim, como um médico que reconhece o impacto da mente sobre o corpo, ele permite pessoas ignorantes e tolas que estejam enfermas que usem encantamentos quando estão mortalmente enfermas e convencidas de que o encantamento as fará melhorar.”
A Visão Mística de Nachmanides
“O argumento do místico Nachmanides e o resultado de seu pensamento são totalmente opostos ao seu predecessor Maimonides. Ele pode ser resumido da seguinte forma:
- O Eterno é um, e ainda assim Ele é composto de dez partes, cada qual tendo uma função diferente. O Eterno não é todo-poderoso porque Ele precisa dos humanos para ajudá-Lo a alinhar essas partes adequadamente e fazê-las operarem da melhor forma.
- O Eterno sabe todas as coisas, mas pode ser convencido a ver as coisas de outra maneira.
- O Eterno é bom, mas o mundo está cheio de demônios e outros seres malignos que precisam ser combatidos. Uma pessoa pode se voltar para o Eterno buscando ajuda para superar esses seres malignos.
- O mundo não opera segundo as leis da natureza. O Eterno está envolvido a cada momento em tudo o que acontece no mundo. Nenhuma folha, por exemplo, cai a não ser que o Eterno deseje que ela o faça. Assim, há oportunidades a cada momento de persuadir o Eterno a fazer algo diferente daquilo que Ele pretendia.
Nachmanides relutava, por razões compreensíveis, em explicitar suas visões místicas abertamentes, então ele simplesmente as indicava. Precisamos nos voltar para seu super comentarista Rabeinu Bachya ben Asher (falecido em cerca de 1310) e outros para um entendimento claro do que Nachmaides está dizendo.
Em seu comentário sobre Levítico 1:9, Nachmanides menciona que o verdadeiro propósito do sacríficio é explicado pelo misticismo: “Pelo caminho da verdade, há um segredo oculto nas ofertas.”
O Eterno precisa de sacrifícios “pelo bem da yichud”, para unificar os Seus vários componentes. Esse é o sentido de korban, “aproximar”, fazer as dez partes do Eterno se aproximarem, na ordem adequada. Uma vez que os humanos façam isso, o Eterno funciona adequadamente e paz é trazida à terra.
Muitas, se não a maioria, das pessoas hoje aceita a posição de Nachmanides de que o Eterno precisa ou se beneficia de sacrifícios e orações, sem perceber que essa ideia se fundamenta na noção dele de misticismo.”
As Duas Perspectivas: Um Comentário
É importante que o leitor compreenda que o debate entre a escola mística e a escola racionalista não é um debate sobre a eficácia ou a importância da oração. Para o Judaísmo, a eficácia e a importância da oração são reconhecidas, e parte fundamental da fé judaica.
A questão que se debate é: O que a oração e os ritos afetam?
Para a escola mística, a oração e os ritos têm impacto direto sobre o próprio Eterno, ou sobre um suposto mundo espiritual invisível. O Eterno pode, a partir da oração de alguém, mudar de ideia e agir de forma melhor.
O objetivo principal da oração e dos ritos seria, portanto, o impacto espiritual, por assim dizer, que tais coisas trazem.
Para a escola racionalista, a oração e os ritos afetam a nós. Se uma oração é atendida, não é porque o Eterno mudou de ideia, e sim porque nós mesmos fomos transformados pela oração.
Para os racionalistas, textos bíblicos que falam de um arrependimento do Eterno ou algo semelhante são meros antropomorfismos – figuras de linguagem para ajudar o ser humano a compreender o Criador, tais como quando o Eterno é descrito como tendo rosto, asas, ou cavalgando. Pois se o Eterno não muda, não poderia mudar de ideia.
Para a escola mística, esses textos já provavelmente seriam bastante literais, e representariam uma mudança de atitude da parte do próprio Eterno, indicando que o ser humano pode influenciar a maneira como o Criador pensa ou age.
A escola racionalista compreende, portanto, que a eficácia da oração e dos ritos está no fato de que eles ajudam a pessoa a se fortalecer na fé, a confiar no Criador, e também a avaliar e refletir sobre seus atos, arrepender-se, praticar obediência, etc. e assim a pessoa se transforma. O efeito sobre a pessoa acaba também afetando a questão sobre a qual se ora. Tudo de acordo com a vontade do Criador.
Não é que a escola mística não reconheça que a oração ou algum rito tenha um impacto sobre a pessoa. Porém, o principal objetivo não é esse, e sim realmente buscar afetar, de alguma forma, o próprio Eterno e o mundo espiritual. A escola racionalista já não tem essa pretensão, e considera arrogância humana a ideia de que isso seja possível.
Conclusão
Evidentemente que, como racionalista, o autor/tradutor deste material considera que a escola racionalista é muito mais alinhada com a verdadeira essência do Judaísmo, em especial do antigo Judaísmo dos Gueonim, do Sanhedrin, etc.
No entanto, o autor procurou aqui, dentro do possível, apresentar as duas escolas sem tecer nenhum juízo de valores. E reconhece que a escola mística também é um movimento histórico do povo judeu, mesmo não sendo sua opção pessoal.
O objetivo principal é instruir e educar o leitor sobre as diferenças de posicionamento das duas escolas.