Introdução
Quero começar dizendo que a essência desta reflexão não é de minha autoria, e sim do rabino Natan Slifkin, um rabino ortodoxo ashkenazi de linha racionalista, que será devidamente identificado nas citações abaixo.
A razão pela qual a reflexão não é uma tradução completa do artigo de Rav Slifkin é simplesmente porque a ênfase que desejo dar é um pouco diferente. Mas, por razões éticas, fica devidamente identificado o autor.
Considero Rav Slifkin uma excelente autoridade para falar sobre isso, visto que viveu entre os Haredim, mas cujos estudos e pesquisas o conduziram a uma predileção por uma abordagem mais racionalista.
Como deve ser do conhecimento de muitos, o Judaísmo, seja ele Sefaradi ou Ashkenazi, se divide em dois núcleos que são baseados em duas escolas de pensamento: a escola mística, e a escola racionalista.
A escola racionalista já foi maioria, especialmente entre os Sefaradim, e é, na visão deste autor, o melhor expoente da tradição dos antigos Anussim, que foram expulsos da Península Ibérica, e que constituem a antiga tradição dos Gueonim, e da Escola de Al Andalus.
A escola mística é maioria hoje, e teve sua origem também entre Sefaradim, com uma boa dose de contribuição da escola francesa. Porém, foi entre os Ashkenazim que ganhou projeção e a dimensão que tem hoje, através especialmente do movimento hassídico.
A Essência do Judaísmo
Deve-se ressaltar inicialmente que o que define o Judaísmo não é esta ou aquela escola, mas sim a halakha, pautada na Torah, e definida pelo Sanhedrin. Isso é a essência do que é a prática judaica, e devemos sempre nos esforçar e lutar para que ela seja cumprida.
O que resta além disso, na realidade, não constitui a essência do Judaísmo, e sim adendos, visões pessoais (sejam elas majoritárias ou não), costumes regionais, etc.
É fundamental compreender a halakha para que costumes e pensamentos regionais não venham a se sobrepor à halakha, coisa que infelizmente acaba acontecendo em muitos casos. Em suma: a halakha da Torah é o fundamental, e essa é a mensagem que temos procurado transmitir aqui.
Mas, sei que há muitas pessoas que observam a diferença entre essas duas escolas, e gostariam de entender melhor isso. Procurarei aqui expor e elucidar, sendo o mais neutro possível.
O leitor deve levar em consideração, evidentemente, que o autor é um peshatista, escrituralista e racionalista convicto. Obviamente, portanto, que é impossível que o texto seja inteiramente neutro, por maior que seja o esforço. Mesmo assim, a intenção existe.
A Escola Racionalista e a Escola Mística
Abaixo, portanto, compartilho o texto do rabino Slifkin:
“Uma das maiores diferenças entre as escolas racionalista e mística de pensamento no Judaísmo se relacionam com a função das miswot. Segundo a abordagem racionalista, que prevalecia entre os Rishonim e é melhor expressada por Rambam, todas as miswot servem um ou mais de três propósitos: Nos ensinar conceitos, aprimorar nosso caráter, e melhorar a sociedade. Não há mais nada que as miswot fazem, porque não há nada mais que elas podem fazer. Miswot podem somente afetar nossas mentes e personalidades.
Segundo a abordagem mística, por outro lado, apesar das miswot poderem fazer todas as coisas acima, esse é um aspecto relativamente menor de sua função. Sua função primária é manipular vários aspectos das forças metafísicas.
Anteriormente, discutimos inúmeros exemplos dessa diferença. A Mezuzah, segundo os Rishonim racionalistas, serve como uma lembrança de nossas obrigações; ao passo que de acordo com os AHaronim místicos, ela provê proteção metafísica.
Netilat yadayim [a lavagem das mãos], segundo os Rishonim racionalistas, limpa os nossos corpos e nos coloca num estado de espírito revigorado, ao passo que de acordo com os AHaronim místicos, ela exorciza espíritos danosos.
ShiluaH haqen [, isto é, soltar a mãe ave quando for tomar seus ovos,] é essencialmente ter compaixão, enquanto segundo os AHaronim místicos, é essencialmente manipular a corte celestial.
Estudar Torah, segundo os Rishonim racionalistas, é essencialmente entender Judaísmo, aprimorar nossos caráteres, e melhorar a sociedade; ao passo que segundo os AHaronim místicos, é essencialmente criar energia espiritual.
Gostaria de introduzir outro exemplo: oração. Esse é um tema complexo, mas sem entrar em muito detalhe, podemos dizer o seguinte: De acordo com os Rishonim racionalistas, a oração tem unicamente a ver com nosso relacionamento com o Eterno. De acordo com a abordagem mística, por outro lado, a oração tem primeiramente a ver com manipular várias energias metafísicas, com um efeito correspondente no mundo material.
E os Tehilim [Salmos]? Esse é um caso interessante, que acredito que também expressa a diferença entre as duas escolas de pensamento. De acordo com a abordagem racionalista, Tehilim [Salmos] tais como os comumente recitados depois da tefilah [oração] em tempos de crise – por exemplo, Shir lama’alot essa ‘enai [Cântico das Ascenções – Elevo os meus olhos – Sl. 121] – são efetivamente uma forma de oração, e funciona da mesma forma.
Por outro lado, o conceito de recitar o livro inteiro de Tehilim [Salmos], que inclui aqueles que consistem apenas de louvor, seria feito pelos que aderem à escola mística. Eles percebem o benefício místico em todos os capítulos, e ainda mais na unidade dos Tehilim como um todo. (Os racionalistas também veriam um benefício aqui, mas de um tipo diferente – nos efeitos emocionais.)” (The Function of Prayer and Tehilim)
Conclusão
A diferença entre as duas abordagens é muito bem explicada por Rav Slifkin, e dispensa maiores comentários.
A escolha daquilo que faz mais sentido para si próprio cabe ao leitor, com a ressalva de que a halakha não deve jamais ser deixada de lado, nem tampouco qualquer grupo tem autoridade para alterá-la ou suplantá-la. (Para maiores detalhes, vide as palestras sobre Halakha, Torah e Corte Mosaica)
Essa é a única crítica que o autor deste material se permitiria fazer a alguns dos que preferem seguir as escolas místicas: Muitas vezes a halakha é revisada, ou mesmo ignorada, em função de conceitos místicos. Isso jamais pode ocorrer.
Para ser justo, essa crítica não está restrita à linha mística. Há, entre as correntes liberais, racionalistas que acreditam que a razão pode substituir a halakha ou mesmo, o Eterno proíba, a própria Torah. Isso também jamais pode ocorrer. Embora o revisionismo seja mais comum entre os místicos, mesmo os liberais.
O objetivo da crítica acima não é causar qualquer tipo de divisão, nem deslegitimar qualquer pessoa, grupo ou comunidade. E por essa razão o autor teve todo o cuidado de ser bem objetivo e imparcial.
Mas, o objetivo é apenas educar o leitor, que deve procurar buscar uma prática judaica pura, pautada na solidez da Torah.