Por que o calendário judaico não observa o surgimento da lua para a festa? E por que há dois dias de festa para vários dos feriados bíblicos? Acaso os dois dias são um acréscimo à Torah?
Essa é uma das perguntas mais interessantes que alguém pode se indagar. Contudo, para que possa ser respondida, é importante primeiramente compartilhar com vocês a experiência que tive durante o tempo em que procurei observar o calendário pelo surgimento da lua.
É muito simples: Basta ver a lua crescente no céu, e declarar o mês. – É o que pensamos, quando pela primeira vez compreendemos o calendário bíblico.
Porém, na prática a coisa é bastante diferente.
Primeira Dificuldade Lua Local ou em Jerusalém?
A primeira coisa que se percebe é que as pessoas que observam a lua se dividem em dois campos: O primeiro, observa a lua a partir da terra de Israel. A justificativa para isso está no fato de que as festas são realizadas a partir de Jerusalém, e que portanto o calendário deve se centrar na mesma. É um bom argumento. Tais pessoas dependem de receberem e-mails com informes de que a lua já tenha sido vista em Israel.
O segundo grupo observa a lua localmente. Pois entende que se o horário de todas as festas, ou mesmo do Shabat, é tomado a partir da observação local, então o início do mês também deve ser da mesma forma. Se formos a Jerusalém, afirma esse grupo, observaremos o Shabat pelo horário de Israel, mas retornando para casa, observaremos pelo horário local. Logo, o mesmo se aplica ao mês. É também um excelente argumento.
Ambos os lados têm boas razões. E fato é que a Torah não nos dá informações suficientes para decidirmos entre uma coisa e outra. A escolha depende daquilo que o leitor acredita ser o mais lógico.
Essa divergência pode ser vista, por exemplo, entre judeus caraítas. Historicamente, a maior parte dos sábios caraítas entendia que a lua deveria ser vista localmente. Hoje em dia, no entanto, a maioria das comunidades caraítas segue um calendário pré-calculado que leva em conta o aparecimento da lua, enquanto outros mais isolados dependem dos relatos em Jerusalém.
A diferença não é desprezível. Há dias em que a lua ainda não está visível quando anoitece em Israel, mas se torna visível já quando anoitece no Brasil. Dependendo das condições, de visibilidade, a recíproca também pode ser verdadeira. Isso significa que pode-se ter uma variação de um dia entre uma festa e outra.
E esta é apenas uma das inúmeras divergências que podem ocorrer.
Um Exemplo das Dificuldades Práticas
Há coisas que o leitor só achará simples se tomar por base uma única fonte de informação, e jamais questioná-la. Quando somos expostos a mais de um grupo, mais de uma opinião, ou mesmo mais de um conjunto de pessoas tentando fazer a mesma observação, os problemas começam.
Isto posto, quero compartilhar com o leitor um fato inusitado ocorrido em um mês passado, e que serve para ilustrar a dificuldade da observação da lua.
Em um dado mês, felizmente não um mês de festas da Torah, um grupo de pessoas seguia o calendário pré-calculado, que afirmava que as primeiras regiões do globo veriam a lua no domingo. Muitos, então, celebraram o Hodesh no domingo.
Em Israel, esperava-se que o Hodesh aparecesse na segunda ou na terça feira. Chegada a segunda-feira, as condições atmosféricas não permitiram a visibilidade da lua a olho nu. Porém, foi possível ver a lua com o auxílio de binóculos e outros instrumentos.
Esse grupo então se subdividiu em dois: Uns declararam o mês na segunda, porque entendiam que esperava-se a visibilidade na segunda (pelo site da NASA) ou que a lua ter sido vista por meio de instrumentos era suficiente para declará-la. O segundo grupo entendia que a forma mais purista seria aguardar até o dia seguinte, para vê-la a olho nu.
Na terça-feira, as condições atmosféricas em Israel também não estavam muito favoráveis, e havia dúvida sobre a visualização da lua. O grupo novamente se dividiu.
Como a lua tem 29,5 dias em seu ciclo, espera-se que os meses lunares tenham 29 ou, no máximo 30 dias. Logo, a maioria entendeu que a lua deveria ser declarada como visualizada no dia 30.
Porém, alguns poucos afirmariam ainda que se a lua não apareceu, deve-se aguardar a lua ser visualizada. E que se ela não aparecesse, o Hodesh deveria ser declarado no dia seguinte. Esta, aliás, não é uma situação incomum.
E, para tornar as coisas mais complicadas, sugiram na terça-feiro relatos de que a lua teria sido vista por muçulmanos no Kuait. Isso é relevante, porque a lua vista no Kuait é a mesma que teria sido vista nos territórios de Israel, especialmente nos tempos bíblicos, em que o território era bem maior.
Semelhantemente, alguns já se indagaram se a lua vista em territórios que já foram de Israel, como por exemplo nos territórios ocupados de forma ilegítima pelos chamados “palestinos”, isso também seria válido.
Em razão disso, várias pessoas voltaram atrás e consideraram que o Hodesh teria se iniciado na segunda-feira.
Este é apenas um exemplo. Em poucos meses observando as diferentes pessoas e grupos que visualizam a lua, pode-se perceber outras questões, como por exemplo pessoas duvidando da visualização de uma pessoa, e declarando a lua no dia seguinte, e até mesmo pessoas confundindo Vênus com a lua, e acreditando terem visto o Hodesh.
Consciência Individual x Comunidade
Mesmo diante de toda essa confusão de dias, alguém poderia pensar: O importante é cada um seguir sua consciência, e seguir o dia que acredita ter visto a lua.
Esse poderia ser um ótimo argumento, não fosse por uma questão delicada: a Torah foi dada para um povo, uma comunidade, e não para que cada um fizesse o que desejasse.
Até porque, as próprias festas pressupõem um coletivo, conforme é dito:
“No oitavo dia tereis assembléia solene; nenhum trabalho servil fareis.” (Bamidbar/Números 28:35)
Como é possível haver qualquer tipo assembléia, festa ou ajuntamento se cada pessoa seguir sua própria consciência, e se nem mesmo em uma única família se pode garantir que duas pessoas tenham a mesma opinião, ambos tendo bons argumentos?
Hoje mesmo respondi a um e-mail de uma pessoa que acreditava que a data do Pessah seria num dia, e seu parente afirmava que seria em outro. Como podem tais pessoas observarem uma festa juntos, se cada um faz uma coisa?
Como poderia alguém, estando em viagem, visitar uma comunidade X, se a data em que aquela comunidade comemora é diferente da data de um viajante? Um pouco de prática demonstra o quão insustentável é esse modelo.
Imagine ainda quando se estende isso ao Templo: E um kohen (sacerdote) acreditasse que a lua teria sido vista num dia, e outro noutra?
E chegamos, portanto, a uma conclusão inevitável: É preciso um órgão central, que regularize a prática, e que possa determinar o que é válido e o que não é em termos de observação, e que declarasse o mês.
E que órgão é esse? Pela Torah, a Corte Mosaica dos anciãos de Israel, composta por kohanim (sacerdotes), nevi’im (profetas) e shofetim (juízes), e com autoridade via imposição de mãos prescrita pela própria Torah, e transmitida de geração em geração.
Como era a Observação da Lua
Essa Corte, hoje conhecida por Sanhedrin (Sinédrio), é quem determinava o início do mês.
A Mishnah traz um registro histórico de como essa corte funcionava:
“Como testavam as testemunhas? O par que chegasse primeiro era testado primeiro. O mais velho deles era trazido e diziam a ele: Diga-nos como você viu a lua – na frente do sol, ou atrás do sol? Estava ao norte dele o ao sul? Quão grande era, e em que direção estava inclinada? Quão larga era? Se ele dissesse ‘na frente do sol’, sua evidência era rejeitada. Depois, trariam o segundo e o testavam. Se seus relatos coincidissem, a evidência era aceita” (m. Rosh HaShanah 23b)
Os anciãos da Corte Mosaica sabiam, pela observação dos astros, o que esperar da lua quanto à sua posição, ângulo, tamanho, e aspecto, de acordo com a época do ano.
Compare isso com o que é feito atualmente, onde cada pessoa observa como bem entende, com ou sem verificação, e declara como achar adequado, com ou sem testemunha.
Mesmo os observadores mais sérios, que aguardam testemunhos adicionais e se preocupam com o conhecimento astronômica do relato, possuem pouquíssima infraestrutura, critérios diferentes, e frequentemente divergem entre eles!
Em Israel, há um grupo chamado Israeli New Moon Society, que se dedica a preservar e elaborar essa metodologia, em preparação ao próximo Sanhedrin.
Observe abaixo um exemplo de seus guias de observação, especialmente a partir da página 3:
http://chem.ch.huji.ac.il/nmr/foo/handouts/5774e.pdf
Os guias da Israeli New Moon Society são os melhores da atualidade, embora eles não sejam o único grupo a procurar avista a lua em Israel (nem estou considerando os que visualizam localmente). E mesmo eles, dadas as limitações da atualidade, têm dificuldades, e não se atreveriam a proclamar o Hodesh sem o Sanhedrin!
A Corte Mosaica, a partir desse conhecimento, entrevistava testemunhas que haviam dito terem visto a lua. De acordo com o testemunho e com o que já se esperava ser o aspecto da lua, o mês era declarado.
A partir daí, originalmente eram feitas fogueiras no topo das montanhas, para avisar a todo o povo.
Quando isso se provava muito difícil, mensageiros eram enviados para avisar sobre o início do mês.
O Problema da Diáspora
Se o leitor observar, contudo, o guia de observação da Israeli New Moon Society, ou se já tiver passado pela experiência de observar o primeiro crescente visível, perceberá que é impossível, mesmo com todo o conhecimento de astronomia moderna, telescópios, entre outros, que dia a lua se fará visível a olho nu.
Se isso não é uma realidade hoje, quem dirá nos tempos anteriores à destruição da Corte Mosaica por parte de Roma.
Quando os judeus da Diáspora estava longe demais para receberem mensageiros por parte de Israel, ou quando os mensageiros não chegavam a tempo, não tinham como ter certeza de se o mês teria 29 ou 30 dias. E, assim sendo, não tinham como ter certeza de que data seria a correta para as festividades.
Por uma questão de zelo, portanto, celebravam as festas duas vezes, em dois dias seguidos, conforme nos diz a Mishneh Torah:
“… os judeus na diáspora celebravam dois dias, pois não sabiam a data na qual os habitantes da terra de Israel santificaram [a lua nova.]” (Mishneh Torah – Sefer Zemanim – Hilkhot Shevitat Yom Tov 6:14)
Com o exílio do povo de Israel, os sábios da Corte Mosaica sabiam que seria impossível declarar o mês a partir da visualização na terra de Israel. Também sabiam que, dadas as perseguições implacáveis do império cristão, poderia haver um tempo em que Israel ficaria sem a Corte Mosaica.
Em sendo assim, resolveram publicar seus cálculos sobre a previsão da visibilidade da lua, que haviam sido aperfeiçoados ao longo dos séculos desde os tempos de Moshe (Moisés). E estabeleceram um calendário pré-calculado para todo Israel, enquanto durasse a Diáspora.
Na realidade, não é correto dizer que o calendário judaico não observa o surgimento da lua. Ele o observa, e o crescente visível continua sendo o ponto inicial dos meses judaicos. Porém, sem o Sanhedrin, é impossível ratificar a observação. Não apenas por uma questão de observar a autoridade instituída pela Torah para a Corte Mosaica, como também por uma questão puramente prática.
É importante ressaltar que o calendário pré-calculado de Hillel II não será perpétuo. Ele existirá até que um novo Sanhedrin possa ter condições de ouvir as testemunhas da observação da lua, e declarar o Hodesh para todo Israel, conforme o sistema exige.
Acréscimo, não! Zelo, sim!
Com Israel na Diáspora e a incerteza sobre a data exata das festas, vale a regra dos dois dias, por uma questão de zelo com a Torah.
Observe que, diferentemente da crítica propagada por grupos cristãos, os juízes do Sanhedrin não fizeram acréscimos à Torah.
Acrescentar à Torah seria dizer que o Eterno ordenou a celebração do Pessah, por exemplo, por dois dias ao invés de um.
Porém, celebrar duas vezes, em dois dias, porque hoje em dia não temos recursos para determinar com exatidão qual dos dois dias é o verdadeiro dia da festa, isso não é acrescentar à Torah, e sim ser zeloso para não descumpri-la.
Até porque, em muitos casos, a não-observância dos tempos do Eterno, quando poderíamos fazê-lo se desejássemos, levaria à pena de karet, isto é, de ser cortado de Israel.
Em caso de dúvida quanto ao cumprimento da Torah, a Corte Mosaica sempre determina que adotemos a leitura mais estrita, para não descumprirmos a mesma. O que faz total e absoluto sentido.
Por essa razão, todas as solenidades da Torah na diáspora são celebradas por dois dias. A única exceção sendo o Yom haKipurim, ou Yom Kipur, onde prevalece a lógica de piq’uah nefesh (preservação da vida), visto que um jejum de bebida e água de dois dias poderia colocar em risco a vida das pessoas.
Portanto, aqueles que, nos dias atuais, celebram as solenidades do Eterno por apenas um dia jamais poderão garantir que estão celebrando na data correta, ao passo que aqueles que celebram por dois dias podem ficar tranquilos em saber que estão celebrando no dia correto, seja qual dos dois dias for.
Como se pode perceber, o calendário judaico tradicional é o mais zeloso com a Torah em todos os aspectos: não apenas assegurando que se observe a data correta, como ainda levando em conta o fato de que as solenidades são coletivas, e não individuais.
Mas, falando sobre sistemas alternativos: Não à toa, os próprios caraítas de Israel, se valendo de cálculos feitos pelos seus sábios da Criméia estabeleceram, maioritariamente, um calendário pré-calculado pelo seu Conselho de Sábios; ao passo que os caraítas egípcios dos EUA adotaram o próprio calendário de Hillel II.
Isso apenas reforça a inevitável conclusão de que o Sanhedrin estava coberto de razão ao estabelecer o calendário fixo, para os tempos da Diáspora.
Nos Tempos da Redenção
Nos tempos da redenção e da restauração da dinastia davídica, com o Templo de pé, e um novo Sanhedrin promulgado pelo povo de Israel, o calendário de Hillel II será deixado de lado, e as instituições de Israel possibilitarão a observação da lua conforme os tempos antigos.
É possível que, à época, uma solução mais adequada também seja dada à questão da Galut (Diáspora), enquanto algum judeu ainda nela permanecer.
Até lá, contudo, a observação da lua em termos comunitários é absolutamente impraticável. Isso, porém, é algo que só perceberá quem tentar obter essa informação de diferentes fontes, e perceber a enormidade de contradições e divergências a esse respeito. Sinal de que, sem um órgão central, tal coisa é impossível.
Uma Vantagem Inesperada
Existe ainda uma segunda vantagem quanto à celebração dos dois dias, que é a tornar mais fácil a situação daquelas pessoas que, por virtude das dificuldades da Diáspora, não conseguem observar um dia específico de festa. Elas passam a ter a chance de folgar pelo menos uma das duas datas estabelecidas, e de estarem presentes em pelo menos uma das celebrações!
Ou seja, o calendário judaico consegue tanto contemplar o zelo que a Torah determina, quanto também dar oportunidade para que as dificuldades da Diáspora não impeçam totalmente a participação das pessoas. Com duas datas, é sempre mais fácil conseguir estar presente do que com apenas uma.